segunda-feira, 9 de julho de 2012

As dores e delícias de correr a primeira maratona


Se eu tivesse o poder de escolher, não hesitaria em pedir sol, sobretudo porque eu estava no Rio de Janeiro, cidade que, definitivamente, não combina com chuva.


Todavia, quiseram os deuses da corrida que, justamente na minha primeira maratona, no último domingo, dia 8 de julho, lá na Cidade Maravilhosa, a chuva aparecesse. E ela não veio sozinha: na garupa trouxe o vento, por momentos, até intenso, e o frio, por momentos, frio até demais.

Na verdade, todos já sabiam que iria chover - a previsão era de chuva mesmo - eu só não imaginava que choveria quase que durante toda a prova.


Para um sujeito como eu, que muitos dizem ser dramático ( e eu concordo), o cenário, portanto, foi perfeito para minha estreia nos místicos e difíceis 42.193 quilômetros. 

Digamos, então, que, para mim, nem foi tanto uma maratona, mas quase uma epópeia - tivesse eu talento necessário cantaria todo o heroísmo daquele momento que vivi - noves fora minha modéstia - em um poema épico.

Entretanto, corredor não escolhe clima para correr. Se tem sol, corre no sol; se cai chuva, corre na chuva. 

As intempéries da natureza são apenas mais um desafio. 

Corredor não pode contra o tempo, não deve desafiá-lo, embora sempre tente correr contra o tempo. É uma relação paradoxal.

Às vezes, o tempo não nos é favorável; outras tantas, é nosso amigo e aliado. 

No meu caso, acho que na maratona, embora tenha tornado a corrida ainda mais difícil para mim,  o tempo (ou o clima) ajudou bastante - tivesse feito o sol costumeiro no Rio de Janeiro acredito que meu sofrimento poderia ter sido infinitamente maior do que foi.

Acreditem ou não no tal do acaso, eu resolvi apostar nele para correr minha primeira maratona.

Afinal, tudo parece mesmo ter ocorrido por causa dele - não vou buscar explicações filosóficas ou existencialistas para tentar explicar isso.

O fato é que, em janeiro deste ano, quando fiz minha inscrição para correr no Rio, minha escolha foi para participar de uma meia maratona, ou seja, os 21.047 quilômetros. 

Eu me lembrava perfeitamente de ter marcado um xis nesta opção! 

O acaso tratou de me provar que minhas certezas falharam.

Contudo, para minha surpresa, ao chegar no Museu de Arte Moderna (MAM) no Rio, para pegar meu kit de inscrição, com toda a documentação necessária (carteira de identidade e comprovante de pagamento) fui informado de que meu nome não constava da lista dos que correriam a meia maratona, mas na relação dos que participariam da maratona.

Assim, peguei o kit da maratona mesmo, levando a tiracolo também a dúvida sobre o que eu faria a partir daquele momento: se enfrentaria o enorme desafio de correr  42 km, sem sequer jamais ter treinado uma distância superior a 30 km (foi o máximo que já havia corrido até aquele momento) ou se, mesmo com o kit da maratona, participaria da meia maratona. 

Foi aí que o tal do acaso começou a entrar em cena. 

Até aquele momento, eu não sabia  que  a largada da maratona (no Recreio dos Bandeirantes) era diferente do ponto de partida para aqueles que optassem por participar da meia maratona (na praia do Pepê, na Barra).

Eu só fui descobrir isso quando olhei para o painel que estava montado na entrada do MAM, com o desenho do percurso de toda a prova, mostrando as diferenças das largadas para a meia maratona, a maratona e a corrida do Family Run, cujo percurso era de 6 km.

Curiosamente ou não, eu estava hospedado na casa da amada tia Arlinda, no Recreio dos Bandeirantes, a menos de 500 metros da largada da maratona e longe, portanto, 20 quilômetros de onde seria o ponto de partida da meia maratona.

Além desta "coincidência", a partir daí, seguidos acontecimentos me fizeram acreditar que eu deveria mesmo correr a maratona. 


Quando eu estava, por exemplo, no Arpoador, não como corredor, mas como turista,  fazendo as fotos que todo mundo gosta de fazer - aquelas famosas onde ficamos olhando para o nada, em direção ao mar, quase sempre de frente para aquele imensidão sem fim, e de costas para quem fotografa, acabei conhecendo um colega corredor: Fernando, do Mato Grosso, inscrito para correr a meia. (Foi a esposa dele quem fez a tal foto que eu citei instantes atrás).

Ao explicar meu vacilo na inscrição, a resposta dele veio rápida: "Será um desafio para você correr a maratona então".

Foi algo semelhante ao que disse minha Júlia: "Uai, pai, se você se inscreveu para correr 42 quilômetros, corra 42 quilômetros". 
Na imaginação das crianças, correr uma distância como esta parece apenas medir no mapa, com a palma da mão estendida, o percurso do Recreio dos Bandeirantes até o Aterro do Flamengo: não deve dar mais que meros 10 centímetros.

Ainda no sábado, um dia antes da corrida, ao explicar aos amigos do Facebook o meu vacilo e expor minhas dúvidas, todos foram unânimes em me encorajar, mas, especialmente o amigo Itamar Ary foi taxativo: "Nada é por acaso"!

Então, me apeguei a esta expressão. Resolvi desafiar o acaso.

PROSA COM O POETA


Em toda esta história a única coisa que não seria obra do acaso, era o encontro com meu amado poeta Carlos Drummond de Andrade, em Copacabana.

Isso já estava escrito: eu saí de Belo Horizonte com o claro propósito de me sentar ao lado de Drummond, para uma prosa particular com o poeta.

Ali, para mim, Drummond não era uma estátua, mas uma presença viva da poesia de que tanto aprecio.


Acreditem ou não, eu fiquei literalmente arrepiado na frente dele. Ali, não era um poeta. Mais que isso, Drummond era uma entidade!

Da mesma forma que o encontro com Drummond foi dos mais importantes e lindos que já tive na minha vida, correr pela primeira vez 42 km, nas circustâncias em que esta coisa se deu, foi, sem dúvida, o que de mais difícil já fiz em toda minha existência.

Isso é muito sério e verdadeiro, também.

Com toda carga dramática que este momento mereceu, correr a maratona foi uma experiência maravilhosa tanto quanto dolorosa.

Perdoem se, por alguns momentos, eu destile aqui os famosos chavões ou beire à pieguice, mas foi um teste incrível para meus limites físicos e psicológicos, principalmente porque eu não estava preparado para correr uma maratona.


Durante a corrida - e olha que passei 4 horas e 36 minutos correndo - sobretudo nos momentos mais difíceis (naqueles em que a chuva apertava, o vento soprava um pouco mais e o frio aumentava - nós passamos quase que praticamente a prova inteira correndo sob a chuva, portanto com o corpo todo molhado, a camiseta colada ao corpo e os tênis encharcados)  eu vi um filme de toda a minha vida passar.

Eu senti muitas dores na perna, claro, mas, principalmente, pareciam que meus pés estavam sendo cortados devido ao atrito das meias molhadas dentro do tênis.

Quanto mais parecia arder e cortar, eu diminuía meu ritmo, que já era lento, principalmente depois que eu cruzei os primeiros 30 quilômetros - além desta distância é que começaria toda a novidade para mim.

Neste percurso, em todo o tempo que corri, lembrei de muitos momentos da minha vida: minha infância e adolescência, de como eu gostava de correr não a corrida, mas atrás da bola, até arrebentar a tampa do dedão do pé e colocar sal para voltar a jogar no dia seguinte, tamanha era a "fomiagem" (como diziam os colegas de então).
Lembrei da minha mãe, criatura que amo tanto.

Veio à minha memória, com nitidez incrível, o dia do nascimento da minha filha, de como sou responsável pela construção do caráter desta criança, dando bons exemplos: a Júlia, sem dúvida, é o maior feito da minha vida!

Recordei-me, especialmente, do dia em que ela, no supermercado com a mãe, resolveu, "com o próprio dinheiro" (como fez questão de salientar no bilhete que me escreveu) comprar um livro de corrida e me presentear, sabedora que é da minha paixão por este esporte.

Lembrei-me das minhas responsabilidades e irresponsabilidades; dos meus sonhos não realizados; dos meus momentos alegres; das minhas frustrações na vida; das vezes que podia ter sido mais feliz e não fui; dos momentos que me senti derrotado ou que fui um vencedor; das pessoas com as quais me relaciono ou me relacionei, das namoradas que tive, das que foram tão importantes; que contribuíram tanto para que eu chegasse até aqui; dos amigos que se perderam pelo caminho ou que deixei para trás, dos poucos amigos atuais, do meu casamento desfeito, da minha culpa católica e de toda minha tristeza por não ter uma família nos moldes tradicionais.


E me emocionei bastante. E bastante eu chorei também: minhas lágrimas se misturaram nem sei bem se ao suor ou se à chuva que caía, insistente.

E, como tantos que vi, principalmente depois de cruzada a linha de chegada, chorei  depois que coloquei meus pés além do pórtico onde acabava a prova.


E eu estava sozinho ali. Era eu e eu. Ninguém mais!

Com certeza, era o choro da alegria, do desafio superado, um desejo conquistado.

Como foi para mim, assim deve ter sido para muitos.

Pude pensar nestas coisas todas da vida e, talvez, mesmo aqui, eu não seja capaz de traduzir em palavras tudo o que aquele tempo todo correndo representou para mim, embora eu insista em escrever sobre esta experiência.

Vi também muitas pessoas lutando contra si mesmas; muitos amigos corredores desafiando as dores, as câimbras, se alongamento pelo caminho, mas insistindo em continuar até cruzar a linha de chegada.

Os corredores - sobretudo os que fazem da corrida não uma competição, mas, principalmente, um prazer - somos todos muito solidários; uns dando força e estimulo aos outros.

Quantos passaram por mim ou por quantos eu passei e sempre as frases eram as mesmas: "Vamos lá"; "Não para não"; "tá muito perto"; "falta pouco"; "vamos em frente"; "você pode"; "Você consegue"; "Toma mais água"!

Tudo isso faz uma enorme diferença e nos faz acreditar que não é mesmo possível parar e que devemos seguir até chegar, correndo, andando ou se arrastando.

Nestes momentos, esquecemos das dores todas que tomam conta do nosso corpo: as pernas doem e não nos obedecem mais, o suor escorre na testa e cai salgado nos olhos, mas parece que somos carregados pelo incentivo dos que nos apoiam.

A dor também, às vezes, nos impulsiona!

E aí a gente puxa força lá de dentro: de onde parece não haver mais, mas há.

A corrida, por algumas vezes eu já disse, é um exercício de autoconhecimento: somos nós conosco mesmo, a enfrentar nossos medos, a testar e conhecer um pouco mais dos nossos limites, da nossa capacidade, de saber até onde podemos ir e chegar.


Uma coisa eu posso dizer - e talvez eu repita mais um chavão - mas acho que saio muito melhor como pessoa, como ser humano, após correr estes 42 quilômetros. 

Confesso que, antes de entrar para o maravilhoso mundo das corridas,jamais poderia imaginar que chegaria aos 40 anos de idade e pudesse fazer isso e que fosse me emocionar assim.

Óbvio que, à medida que vamos vencendo as barreiras, a cada dia nascem novos desafios e um dia, logicamente, eu chegaria a disputar a maratona. Eu apenas não achava que fosse agora. E nem desta forma.

Este era um plano para o ano que vem: eu queria apostar na mística de fazer 42 anos e correr 42 quilômetros. Eu já estava a ensaiar esta ideia na minha cabeça.  

Mas os quarenta e dois quilômetros foram mais rápidos que eu e chegaram na minha frente.

Agora, depois que tudo passou, carrego comigo esta maravilhosa experiência, na certeza de que dor maior que a que senti durante a prova eu teria não nas pernas, mas, principalmente, na alma, caso eu houvesse desistido de correr. 

Seria um desperdício de vida não correr a maratona.

Seria como jogar pela janela a oportunidade que se apresentou para mim num lugar tão lindo como o Rio de Janeiro, e, por isso, sou muito grato pela saúde, a disposição, a força de vontade e a coragem que tive (sim, eu faço elogios a mim mesmo, sem qualquer pudor), coisas que Deus a mim me concede a cada dia que me levanto da cama e tenho a graça de renascer para a vida. E para a corrida.


Pode parecer exagero meu e acho que é mesmo, mas depois disso, da forma como foi, na base do improviso, sem treinar, apostando meramente na força do acaso, penso que sou capaz de enfrentar algumas coisas que me desafiam, sobretudo as que estiverem dentro dos meus limites e da minha capacidade.

Eu acreditei que podia, fiz uma aposta com o acaso e acho que consegui vencer.


Inevitável, portanto, não terminar este texto com dois versos de Drummond, de poemas distintos, que servem para ilustrar o que significou para mim este momento tão especial: "...nunca me esquecerei desse acontecimento na vida de minhas retinas tão fatigadas... (Tinha uma pedra no meio do caminho) e "...mas coisas findas, muito mais que lindas, essas ficarão" (Memória).

Agora, tudo está guardado aqui dentro.

Ficou na memória, ficou nas pernas, está dentro do meu coração e já faz parte da minha vida.

A corrida pulsa!

Vamos correr!