domingo, 20 de janeiro de 2013

Na corrida para ganhar a vida


Neste domingo (20), antes de sair de casa, perto das sete da manhã, decidi não apenas correr, mas, também, andar de bicicleta. 

Meu propósito era correr e pedalar, pedalar e correr. 

Corri muito pouco, não mais que 2 quilômetros. Pedalei em demasia.

Resolvi pedalar primeiro e correr depois. 

Mas apenas corri quando já estava bem próximo de casa. Foi quando tive a oportunidade de deixar a bike "acorrentada" num poste (contrariando sua própria natureza de ser livre), em um bar em que, pelo menos de vista, algumas pessoas me são conhecidas.

A infância é um tempo de
liberdades irresponsáveis
Toda vez que corro, volto a ser menino.

Correndo, revivo a liberdade irresponsável dos tempos de infância. Criança só quer saber de brincar. Esqueço do tempo. Deixo as horas de lado. E sempre demoro muito.

Correndo, experimento a sensação de viver a cidade em que moro. 

Minha corrida é lenta. Observo muito. Contemplo. 

A corrida é, para mim, também, a deliciosa experiência do olhar.

Mas, hoje, muito mais que olhar, experimentei a sensação, o cheiro e o gosto da minha infância e tive mais uma lição de que a vida é mesmo uma coisa muito rara.

Depois de correr, parei neste bar em que deixei a bike, para comprar um picolé e tomar água. 

Foi quando um barulho vindo não de muito longe me transportou para mais de trinta anos, para aqueles tempos que muitos de nós ainda hoje afirmamos: "eu era feliz e não sabia".

Clac, clac, clac. Era o barulho de uma matraca, aquele famoso instrumento feito de madeira e com um pedaço de ferro no meio que, quando sacudido, produz um som que, às vezes, chega até a doer em nossos ouvidos. Eu achava que isso nem existia mais.

O vendedor de biju
A matraca anunciava a venda de um "negócio" que eu adorava comprar quando criança: biju.

Nos tempos de outrora, o "bijuzeiro" passava na nossa rua anunciando o produto. Hoje, o mais comum é conseguirmos comprar esta iguaria "tipicamente brasileira, de origem indígena tupi-guarani" (obrigado wikipedia) nos semáforos.

Muito mais que voltar à minha infância, ao ver o homem que vendia o biju, pensei muito no meu presente. Na vida atual de todos nós que reclamamos tanto e agradecemos quase nada.

A mim, naquele momento, muito me intrigou a imagem daquele senhor, que, visivelmente, com mais de 60 anos, repetia uma cena que, infelizmente, temos visto muito nos dias de hoje: pessoas idosas, que tanto já trabalharam e que, nesta altura da vida, justo quando poderiam estar usufruindo de momentos de descanso, ainda estão nas ruas para garantir a sobrevivência.

Eu quis conhecer aquele homem. Apresentei-me.

Pedi autorização para entrevistá-lo. 

Ele se mostrou ressabiado. Franziu a testa - suada e queimada pelo sol - mas se tranquilizou quando eu disse que era jornalista e que gostava de correr, de andar o tanto que ele andava para vender biju. E que adorava também histórias de pessoas anônimas.

Ele concordou.

Então, eu soube que seu João Batista Rodrigues tem 62 anos e que é morador de um bairro chamado Fazenda do Sossego, em Santa Luzia. 

Aos 62 anos, seu João encontra disposição
 para correr a cidade vendendo biju
Seu João começou a trabalhar ainda menino, com sete anos de idade. 

Foi office-boy em Belo Horizonte. Depois, se mandou pra São Paulo. 

"Lá, eu trabalhei 'fichado' por 12 anos como encarregado de caldeiraria. Depois, voltei para Santa Luzia e trabalhei mais 10 anos como encarregado de alto-forno", contou.

Como o serviço que executava era insalubre, seu João conseguiu aposentadoria especial aos 40 anos de idade. "Eu me aposentei por tempo de serviço e, de lá pra cá, passei a vender biju. Faço isso há 22 anos", disse, sem qualquer sinal de desânimo, apesar do andar  cansado que pude observar nele.

Quando lhe perguntei se àquela altura da vida, ele não deveria estar em casa, descansando, curtindo a família, para não ter que sair para as ruas e continuar na batalha pela sobrevivência, meu entrevistado foi categórico.

"Meu filho, dizem que quando a gente se aposenta e fica em casa parado, a gente morre. E eu não quero isso para mim. Só gosto de ficar parado para pescar nos sítios que tenho com outros irmãos em Morada Nova de Minas e São Romão. Lá, eu pesco e gosto de cozinhar", disse, sorridente.

Ele me disse que tem uma "boa" aposentadoria - uns quatro salários mínimos, segundo ele - e que, vendendo biju, consegue cerca de R$ 150 ou mais por semana.

Todas as quartas-feiras, ele sai de Santa Luzia e vai até uma fábrica que vende biju no bairro Floresta. Compra o produto e revende de quarta a domingo. Feliz da vida.

Seu João me contou que não chegou a ser casar. "Fui apenas 'amigado'", afirmou.

Este relacionamento lhe deixou um casal de filhos - ambos casados - e seis netos.

Enxergar vitalidade naquele homem me deu ainda mais força. 

Logo pensei em quantas pessoas nesta idade, beirando ou passando dos sessenta anos, estão doentes e não conseguem nem se levantar da cama. Ou, então, aqueles que estão saudáveis, mas, por um motivo ou outro, se entregam ao desânimo, à falta de vontade, à depressão, até mesmo à preguiça para justificar qualquer coisa. 

Parece piegas, mas exemplos como o do Seu João é que devem nos fazer não desistir.

"A vida é muito maravilhosa. Nós só temos que saber viver. As pessoas só tem que aprender a respeitar as outras, seja qual for a cor delas. Temos que crer que acima de nós existe Deus e abaixo dele, estamos nós, com saúde. Abaixo da saúde, temos as amizades", filosofou seu João, interrompendo a entrevista e me dizendo: "Agora deixa eu correr porque tenho muito que vender ainda".

Agradeci, me desculpei, pedi autorização para fazer a foto, comprei três saquinhos com biju e saí com as lembranças da minha infância, dos tempos em que eu era menino.

Saí da conversa com seu João com três saquinhos
de biju e uma lição de vida saborosa
Eu adorava comer biju, embora fosse um verdadeiro drama quando a casquinha agarrava na garganta. Gostoso também era assoprar as migalhas para fora, sujando quem estava próximo de mim. 

Seu João não sabe o quão me fez bem neste domingo. Seu João é um homem sábio. Eu não.

Ainda bem que ele me cobrou apenas pelo biju, porque pela aula de vida que recebi acho que não teria mesmo condições de pagar.

A vida é bela, embora tão corrida.

Obrigado, seu João!

Abraço a todos.

Vamos correr!