Pelo segundo ano consecutivo, corri, neste domingo (25), a Meia Maratona Internacional de Belo Horizonte que, este ano, chegou à sua quarta edição.
Segundo os organizadores da prova, um dos atrativos desta meia - que, atualmente, é a única com o percurso de 21.197 km realizada em Beagá, o que é um fato lamentável, sobretudo para os amantes da corrida - está no fato de parte do percurso (3 quilômetros) ser realizado dentro do Zoológico.
Para tanto, a cada ano é escolhido algum animal para ser, digamos, "homenageado" - quase sempre é um bicho que está em risco de extinção. Em 2013, o premiado foi o gavião real.
Este ano, a Meia Maratona Internacional de BH homenageou o Gavião Real |
No site de divulgação da prova está a explicação: "A caça e o desmatamento são as principais ameaças ao Gavião Real. A despeito do tamanho e da força, o gavião real é frágil. Reza a lena na floresta que a ave de garras afiadas ataca pessoas e come crianças, o que infelizmente estimula a sua matança. O avanço da fronteira agrícola e da retirada de madeira para a venda é outro fator de risco, uma vez que a espécie precisa de grandes áreas preservadas para sobreviver e só entrelaça o ninho das árvores mais ascendentes. Para resguardá-la, não resta outro caminho que não a conscientização".
Na verdade, afora o fato de o Zoológico ser um lugar realmente muito bonito - arborizado, sobretudo - sigo sem entender a lógica da escolha do local para que corredores tenham que passar por ali. Isto, por pelo menos dois motivos.
Explico o porquê da minha opinião.
Com exceção deste que vos escreve - que tem mania de correr com a máquina de fotografar nas mãos, para captar tudo o que vê pela frente e que não encara a corrida como uma competição, mas como um grande prazer de observar a vida e as coisas, para, depois, tentar "poetizar" - aqueles que estão correndo não prestam muita atenção nos bichos, tampouco ganharão mais um bocado de conscientização pelo simples fato de correrem parte do percurso ali dentro. Eles querem mesmo é competir, superar os próprios recordes pessoais, diminuir o tempo de uma prova em relação a outra.
A girafa não apareceu |
Em alguns momentos parecia uma floresta |
A segunda razão é que penso tal como os ambientalistas, embora não seja um deles: correr dentro do Zoológico me parece ser um motivo a mais para estressar os bichos - principalmente os que já estão acordados, que ali estão, creio eu, para ter um pouco de sossego ou para fugir da sanha depredatória dos humanos, afinal de contas, o ser humano, que, aliás, anda tão desumano, é dos bichos mais estranhos que conhecemos. Se um humano mata e maltrata um outro ser humano, porque ele não faria isso com um animal indefeso, não é mesmo? (Então, não custa nada mesmo perturbar um pouco os animais, com aquela correria danada dentro do zoológico, com o bater contínuo, forte e incansável de pés dos corredores no chão).
Percurso no Zoológico foi de cerca de 3 quilômetros |
Por isso, mais uma vez, a exemplo do que ocorreu no ano passado, foi impossível não me recordar da estupenda "Passaredo", música de Chico Buarque e Francis Hime, que, escrita ainda nos idos dos anos 80, na minha modesta leitura, já era uma espécie de alerta contra a ação do homem sobre os bichos. Tanto é que o refrão é bem elucidativo: "...bico calado, muito cuidado que o homem vem aí". Com exceção do elefante, que pude ver, acho que os outros bichos resolveram seguir o conselho dos poetas e ficaram refugiados, de bico bem calado, em suas jaulas...
Todavia, como a corrida para mim é, também, um momento de grande reflexão sobre a vida e as coisas que a cercam, ao saber que o gavião real era o "homenageado" da vez, lembrei-me de um livro que li há muitos anos: "A águia e a galinha, uma metáfora da condição humana", de Leonardo Boff.
Nesta bela obra, Boff faz uma reflexão sobre os caminhos e descaminhos do ser humano na busca de sua própria identidade - foi aí que me lembrei que, certa vez, escrevi aqui mesmo neste blog que a corrida ajuda a me conhecer um pouco melhor: a corrida é autoconhecimento.
Valendo-se de muitas metáforas, Leonardo Boff diz que nós, ao vermos uma galinha e uma águia, estamos vendo muito mais que simplesmente uma águia e uma galinha, pois, segundo ele, estas são duas dimensões fundamentais da existência humana.
Pampulha é sempre um lugar inspirador |
Na minha humilde opinião, é muito bonito, poético, inspirador, instigante e encorajador o que nos diz Boff.
Para ele, o que simboliza a galinha é "a dimensão do enraizamento, do cotidiano, do prosaico, do limitado". Em contrapartida, a dimensão da abertura, do desejo, do poético e do ilimitado é o que simboliza a águia (ou o gavião real).
A corrida nos dá muitos exemplos de fé, determinação e superação, coisas que todos podem ter |
Ou seja, em outras palavras, o que o autor nos diz é que dentro de cada um de nós há uma dimensão galinha e uma dimensão águia e que nossa tarefa é conseguir equilibrar os dois pólos afim de fazer o que ele chama de "arranjo existencial". Lindo isso, não é mesmo?
Cada um tem um motivo para correr: encontre o seu! |
Portanto, correndo hoje (sim, eu consigo pensar nisso tudo enquanto corro), pensei também que realmente depende de cada um de nós ter a águia como metáfora para aspirar a uma vontade infinita de voar e de transcender para além do normal ou, então, nos ocuparmos unicamente da nossa dimensão galinha, sem sair do cotidiano, do trivial, do banal.
Na corrida é você quem define seu caminho |
Na verdade, penso que o que a vida corrida que levamos quer (e exige) de todos nós é mesmo o que nos sugere Boff: "... somos galinhas, seres concretos, históricos. Mas jamais devemos esquecer nossa abertura infinita, nossa paixão indomável, nosso projeto infinito: nossa dimensão-águia!"
Sem o brilhantismo e a inteligência de Boff, era mais ou menos isso que eu já quis dizer aqui neste corridaemprosaeverso.blogspot.com.br quando escrevi que "a corrida nos leva além" e que "pela corrida, somos capazes de transcender". Ou seja, no meu modo de encarar a corrida, penso que ela pode mesmo nos levar, metaforicamente, por caminhos que não conhecemos e até chegar onde, talvez, jamais pensávamos poder chegar. A corrida também é filosofia.
Particularmente nesta Meia Maratona Internacional de Belo Horizonte, então, a corrida me deu a grata oportunidade de refletir sobre meus caminhos pela vida afora e acerca da nossa condição águia - que, por vezes, parece adormecida, dando mais vazão à dimensão galinha - mas, também, de acreditar que o homem, bicho que é por natureza, ao caminhar ou correr pela vida, o faça de maneira mais amável, paciente, sensível, gentil, com mais fé e esperança, sendo menos animal do que tem sido.
Um abraço a todos.
Vamos correr!